sábado, 16 de novembro de 2013

Saudade lilás (crônica)

          Todo sentimento tem uma cor relacionada com o efeito que repercute em cada pessoa. Daí, concluo que a saudade é lilás, aquele tom entre o rosa e o azul, que faz ninho por trás das auroras no amanhecer de um dia morno e preguiçoso... E brilha dentro de nós como a malacacheta, instigada pelo reflexo do sol.
        Falo daquela saudade que não dói sentir, que combina com licor de amoras e perfume de jasmim. Que nos tira para dançar ao som de Straus, Mozart ou Beethoven, depois, conduz-nos felizes a um cantinho, entre almofadões macios ou em rede que nos embala para muito além das horas comuns e de um tempo comum... 
         Saudade lilás não tem pressa nem produz ansiedade.
          Saudade lilás nos traz de volta a maciez do beijo consentido e do abraço compartilhado, que sorrateiros se instalam, bem o alcance, onde é possível revivê-los intensamente e no instante presente. 
           Saudade lilás leva a gente para um passeio à beira-mar, nos faz falar sozinhos, rir sozinhos sem motivo, feito criança, sem nos importarmos com quem nos observe e nos julgue como alguém  excessivamente distraído ou louco.
           Porque saudade lilás é exatamente a mistura de distração e loucura, o que a faz indefinível para certas pessoas, disfarçada para outras e com segredos cúmplices com poucas...

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Testamento afetivo (crônica)

                       
      
       Um dia, sei que deixarei esta vida... E procurei vivê-la leve, como quem passeia na praia, descontraída, colhendo conchinhas do mar, respirando um perfume que nunca soube de onde vem, perfeitamente feliz, sozinha, ou ao lado de gente que gosta de sorrir à toa também.
       Vivi como quem costura uma colcha de retalhos coloridos, em quadrados e losangos, formando um mosaico de todos os momentos bons e os não tão bons assim. Depois, transformei-os em um quadro raro e possível na minha fértil imaginação.
       Vivi sem assustar ninguém, ou com gestos descabidos ou decisões incompreensíveis. Reservei apenas algumas surpresas, todas boas de saber, todas boas de sentir. Aquelas que fariam a minha alma cantar, se alguém também as me reservasse. 
        Vivi como quem sabe que todo final de semana ditoso pode ser hoje, e o ano inteiro...
        Não fiz numerosa poupança, não guardei dinheiro em nenhum grande cofre, não deixarei, portanto, nenhuma cobiçada fortuna. Estou absolutamente certa, por conta disso, de que ninguém há de torcer para que eu morra, logo à primeira pneumonia que me acometer. 
        Deixo meus livros, não são muitos, doei alguns, emprestei outros, que nunca mais retornaram. E agonizamos ambos de saudade vida afora. Os que sobreviveram, que fiquem em mãos que os acariciem, que os preservem de maus humores e ranzinzices, e que jamais sirvam apenas de peso para um amontoado de papel. Que os tome quem os ame somente e, mais ainda, que os leia além da capa. Torço para que, lendo-os, entenda-os, a ponto de os querer ler de novo, uma e outras vezes... Ia me causar profunda dor se fossem transformados em meros enfeites na estante de alguém.
          Carro, roupas e quase nenhuma joia, não os incluí na minha lista de objetos especiais, por não terem para mim nenhum referencial afetivo. Portanto, além dos livros, uma caneta dourada, que ganhei no sorteio com a turma, na minha formatura de jornalista. Tem o meu nome e uma data, não sei se poderia interessar a alguém. É delicada, bonita e, desafiando o tempo, ainda dourada, como nova. Uma caneca com um pires, que comprei para ajudar em uma campanha de proteção aos animais, trazem o desenho de um gatinho na caneca e o de um cãozinho, no pires. Sugiro que fique com eles somente a pessoa que se identifica com os animais, do  contrário, seria muito desconfortável olhá-los todos os dias, no café da manhã ou no chá da tarde. Um oratório pequeno, de vidro e madeira, com alguns santos do meu fervor, a quem não dei muito trabalho, todavia, deles recebi proteção e companhia na minha fé. Quem os escolher, espero que tenha infinitas bênçãos e graças alcançadas.
      Por fim, um álbum de fotos, atuais e antigas, em lugares comuns, mas significativos, repletos de detalhes que só eu sei nominar e traduzir. E um desses álbuns está a foto de uma árvore de tronco robusto, generosamente frondosa, dividindo ao meio parte de uma rua. Suas raízes teimosas, entediadas da escuridão funda da terra, preferiram o acolhimento da luz e rasgaram-se expostas e nuas, desafiando a dureza das pedras.
        Há uma sintonia velada entre nós...  

terça-feira, 29 de outubro de 2013

Gente que é arte (crônica)


             A vida me mostrou que amigos são como um cordão invisível  e terno, que nos enlaça e puxa em direções ora oblíquas ora convergentes, aqui e ali, abrindo e fechando elos afetivos.                
              Eu não conhecia Lília, a anfitriã. Fui levada a sua casa por uma amiga, onde encontraríamos outros amigos. Amigos que se reúnem para aconchegar a amizade num copo de suco ou em uma xícara de chá. Só que eu não supunha ser um encontro com a arte, a arte mais simples e delicada, sem sofisticação, sem rebuscamento, só alma. Com gente que é a própria arte. 
              Que bom constatar que as pessoas que imaginamos únicas, acabam transcendendo o imaginário.
               Uma borboleta, multicolorida e quase viva, de tão real, colada à porta de entrada, não estaria ali por acaso. Mãos especiais a teriam designado guardiã de algum tesouro, que não se descreve com palavras.

            Lília, uma senhora de olhos brilhantes e sorriso afável, fez-me sentir como se eu costumeiramente frequentasse aquela casa. Generosa, de leveza nos gestos, feito gente que transforma naturalmente em arte tudo o que toca, mas não se dá conta, talvez porque Deus escolhe os seus artistas, mas não revela a eles sua escolha, delegando essa tarefa à observação sensível de alguns e, quem sabe, por merecimento, absorvê-la.
      A viuvez não a fizera solitária, ao contrário, deixara-se acompanhar pela pintura, que coloria os seus dias em movimentação e prazer, tornando sua companheira fiel, "mas exigente", ponderou, com um sorriso brincalhão. "E, muitas vezes, impaciente", emendou, num tom simulando crítica.
         Havia quadros, pintados por ela, distribuídos pelas paredes dos diversos ambientes da casa: antessala, sala e quartos. Senti-me imediatamente abraçada e acolhida pela arte. Com voz mansa, quase inaudível, fez questão de falar sobre cada um dos quadros: a motivação e o tempo que levou para pintá-los. Ali, sob as paisagens de campo, montanha e mar, a arte também registrava um pedacinho de sua história de vida.
     A disposição geométrica dos pratos, copos e talheres era pura arte, espontânea e despojada. Os sucos, em jarras transparentes, tinham cores indefinidas, que também brincavam de arte, bem diante dos meus olhos. 
     Lília pegou o meu copo, delicadamente, colocou nele um pouco de suco e pediu-me para experimentar e adivinhar o sabor. Num segundo, voltei à minha infância, quando, sentada no chão, em círculo, ao lado de outras crianças, brincávamos de adivinhação. 
      O suco impregnou a minha boca de um sabor intraduzível. Bebi um gole e outro mais. Sacudi a cabeça pedindo aos céus para ajudar-me a traduzir o sabor daquele néctar dos deuses, mas em vão. O sorriso confortante e brincalhão de Lília acudiu-me prontamente:
       - É uma brincadeira que faço com os meus convidados. Os sucos são feitos com mistura de frutas exóticas, o sabor fica propositalmente indefinível.
      Senti-me apanhada na doce brincadeira e sorri maravilhada. Todos sorriram contagiados e o lanche transcorreu em meio à afetividade e arte, trocando de lugar o tempo inteiro.
     Arte que esculpe sorriso aberto em mãos naturalmente mágicas, arte que a gente absorve e cataloga no âmago, porque é onde guardamos o abissal divino.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013


Não existe o texto perfeito, mas a perfeita sintonia...

  
Solange Castro Medina



                                                                     

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Urgência de viver (crônica)

                                          
       
                                     
       O excesso de urbanidade tem despertado em mim a necessidade incontida do contato com a natureza. Ando sentindo urgência de uma casinha no mato, com árvores de galhos fartos que me abracem receptivos, não de edifícios frios que encobrem o céu e a hospitalidade.
       Tenho urgência de sentir os meus pés caminhando na terra, de respirar o ar acariciando-me com o perfume das folhas e flores silvestres, chegando saudável aos meus pulmões. De ouvir os cantos misturados de pássaros comuns que os farei raros e os admirarei à distância permitida. Prometo-lhes a mais compreensiva companhia e as boas-vindas em bebedouros de água fresquinha, sob frondosas árvores com frutos suculentos, ao ar livre, e não em cruéis gaiolas, penduradas num teto qualquer. Quero-os livres e festeiros na minha janela. Sequer vou me importar que ali façam seus ninhos e se instalem, e ainda lhes garanto protegidos contra os sobressaltos da perseguição.
       Tenho urgência de sentir cães brincando com gatos ao meu redor, contrariando mitos da estranheza e da incompatibilidade entre eles. Quero me encantar com folhas secas e verdes, dançando de mãos dadas ao rodopio do vento. Sei que me trarão aconchego e harmonia, sem interferir no silêncio que há muito não escuto: o barulho ensurdecedor da civilização não me permite mais... Ela é a mão gigantesca que encobre o sol e as noites estreladas.
       Tenho urgência de retomar, ainda, a visão da lua, adentrando seu brilho por todos os vértices da minha casa, salpicando nela perfume e mistério.
        Depois de um tempo, paparicada pela plenitude, por animais e pássaros, vou me permitir a visita de gente sem medo e que também não me assuste com evasivas e invasões, sobretudo com permanências efêmeras.
        Gente que já tenha escrito um ensaio sobre a urgência de essencialidades, sobre vida simples e possa entender o que eu não digo ou não escrevo, mas tão evidente nas entrelinhas...








sexta-feira, 14 de junho de 2013

O silêncio da felicidade (crônica)

               
      Disse-me certa vez um amigo, desses raros, com quem conversamos como se conversássemos com nós mesmos: "Seja discreta na sua alegria e silencie ao máximo a sua felicidade, os ouvidos e a percepção da inveja são mais atentos do que se possa imaginar, quando ela constatar o seu sorriso fácil, aí já será tarde, a felicidade terá tomado o seu assento e se instalado no lugar que lhe foi destinado e no tempo que tem que ser, no tempo da própria vida... "
   Não gostaria de viver muitos anos sem ter vivido intensamente. Quero sempre olhar o amanhecer e constatar que a minha construção pessoal foi consciente, que contribuí permissivamente para ser o que sou. Que fui menos teimosa ou arrogante nos meus propósitos, mas muito mais obstinada. Saudei as minhas vitórias com celebrações discretas, respeitando o adversário, porque também experimentei a derrota um dia, que me fez aprender a perder, o que não significa ter-me acomodado. A canção que entoei nos dias felizes ecoaram nos meus momentos de perdas. Quando estive fragmentada, recolhendo os meu pedaços, entendi que a felicidade requer atenção, é necessário ser feliz com reservas. Faz-me lembrar a roda gigante do meu tempo de criança, naqueles parques coloridos e agitados de músicas e luzes, como se personalizasse a felicidade. A roda girava, girava, ao som da alegria. De repente, ela parava lá em cima, e um calafrio assustador e implacável fazia balançar nos ares as nossas pernas miúdas, sem chão. As estrelas pareciam mais perto, mas a solidez, cada vez mais distante...
   A felicidade pode ser euforia e calafrios, como uma roda gigante. Seremos sempre pequenos e crianças para entendermos os propósitos divinos, tão intraduzíveis quanto inevitáveis. E nunca estaremos atentos suficientemente para não sermos surpreendidos.
   Mas sei, também, que na noite escura há sempre uma estrela, mesmo invisível, porque acredito que ela está lá...
  Sonhadora que sou
  recolho a minha estrela
  e a levo para dormir,
  mas a empresto ao céu,
  quando o céu me pedir...

terça-feira, 19 de março de 2013

Rosas amarelas (crônica)

  Se você ama uma flor, não a colha, porque se você colhê-la, ela morre e deixa de ser o que você ama. Então, se você ama a flor, deixe-a estar. O amor não está na posse, mas na apreciação.  (Osho)



      Herdei de minha avó a preferência por rosas amarelas. Dizia, com a sabedoria de uma cultivadora, que elas eram especiais. Passei alguns anos tentando descobrir a essência dessa especialidade, muito além de seus espinhos mais frágeis do que os das rosas de outras cores e de seu suavíssimo perfume. É necessário permitir-se um tempo entre você e a rosa amarela, se quiser descobri-la. É necessário, talvez, uma vida...
       Uma roseira de rosas amarelas parece a sonata que o músico ainda não compôs, o poema ainda não saído da inspiração do poeta e apenas um esboço na tela do pintor.
      Que amarelo fascinante tonaliza as rosas amarelas? Gotinhas do Sol? Bordas do arco-íris? Onde encontrar o parâmetro para a cor que a compõe? Traduz silêncio revelador e cúmplice, solidariedade abissal que aconchega, ternura mansa de mãe e maciez dos gatos angorás. Sem soberba e altivez, reina absoluta e espontaneamente sua beleza rara entre todas as rosas. Combina com sorrisos tímidos e sentimentos delicados.          Não inspira ousadia, arrebatamento, mas posturas elegantemente contidas. Harmonizam-se com os vinhos brancos e os champanhes borbulhantes nas taças de cristais. Se eu as pudesse personalizar, diria que as rosas amarelas são fadas ou bailarinas, possuem passos leves, como se flutuassem, não gritam, mas sussurram, não seduzem nem apaixonam, mas cativam e encantam.
      Igual a minha avó dizia, penso que nunca deveriam sair de suas roseiras para serem transformadas em buquês ou enfurnadas em jarras e arranjos por nenhum motivo.
         Flores têm alma e vida,
        devem nascer e morrer
        nos galhos das floreiras.
        Rosas de todas as cores
        nunca deveriam ser   

       arrancadas das roseiras...