terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Onde estão os jardineiros?

                                              
     

     Se você é um postulante a jardineiro, saiba que essa intenção requer dom, advindo da sutileza, com horas conciliadoras entre a paciência e a leveza, exalando alma totalmente aflorada...
    Todavia, se você não possui afinidades com plantas, não ouse impor-lhes a sua presença, passe de largo... Não force os seus limites para não ser invasivo, porque plantas, muito mais do que água, precisam de quem as perceba de presença benfazeja. Do contrário, elas se sentirão preteridas, assoladas e, inexoravelmente, murchariam de tédio. E você seria resumido a um “mão imprestável de plantas” ou a um “mão ruim de plantas” o que, convenhamos, não é nada lisonjeiro.
     Plantas não se deixam enganar, possuem percepção aguçada do verdadeiro desprendimento humano, portanto, somente elas têm autoridade para alçá-lo ao posto pretendido, se elas vicejam e florescem por suas mãos, considere-se jardineiro...
    Jamais ouse pegar um regador para aguar plantas, sem antes predispor-se a essa tarefa, sem antes preparar-se mental e espiritualmente. Evoque suas melhores lembranças, cantarole manso e baixinho, de preferência as canções de ninar que ouvimos na infância.  
    Estabeleça com elas um ritual dulcificado e sereno, um monólogo sussurrante e acalentador, até que  sintonizem com suas boas intenções. Suavize-se, purifique-se: você está adentrando o espaço sagrado de seres que se comunicam por energia...
    Penso que é  absolutamente impossível um ser humano conseguir ser rude, inflexível e soberbo, após passar alguns instantes em contato com as plantas,  nenhum dirigente de nação ousaria promover um conflito mundial, nenhuma corte jurídica decretaria uma condenação de morte, nenhuma atrocidade seria cometida, nem se quebraria uma promessa, dívidas não seriam executadas, sorrisos não seriam contidos e nenhum temor sobressaltaria corações. Todos os braços se ergueriam na direção de outros braços, em abraços que se encontram, se comungam e se laçam.     

       Os jardins são tantos, mas é da falta de convictos jardineiros que as plantas andam ressentidas...

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

O perfume e o sabor que os tempos têm


      Gosto de caminhar quando o sol se põe, tenho a ousadia compartilhada de que a brisa se espreguiça e vem passear de mãos dadas comigo. Brisa cúmplice, desobrigada com tempo, razões ou amarras.
      Lá vamos nós: ela fazendo-se lenta, para acompanhar os meus passos e eu equilibrando-me, trôpega, para não desabar do seu ritmo. Sinto o seu sopro nos meus ombros que me alenta e refaz, como se me desse asas. O mesmo sopro que me traz o perfume e o sabor dos tempos.
        E vejo a menina correndo, cabelos tão lisos e loiros, soltos ao vento, subindo ladeiras, esgueirando-se por becos vizinhos, brincando de esconde-esconde, ao lado de uma criançada que grita e saltita, movida por uma felicidade sem fim e tão funda, que chega a doer as entranhas. Esse tempo tem o perfume de terra molhada e o sabor de baunilha.
        Caminhar com a brisa me parece tão hipnótico, que  já não sinto os meus pés, certamente devo estar voando. Mas para que eu haveria de querer pés, se é o tempo em curva que quero alcançar com as minhas asas? Agora, ouço uma música suave e danço quase sem perceber. Vejo-me sonhando com possibilidades inventadas e traduzidas só para mim, todas registradas em um diário que traz na capa o desenho de uma jovem, sentada em uma cadeira de balanço, na varanda, rodeada por lindo jardim florido. Pendente entre as páginas do diário, um pequenino cadeado dourado, com chave... Tão pequenino para guardar tantos segredos do coração. Esse tempo tem perfume de azaleias e o sabor de pitangas vermelhas.
        A brisa se faz mais rápida para me apontar as horas num relógio imperioso e indiferente, relógio que marca responsabilidades, trabalho e compromissos que parecem inadiáveis, relógio que se agiganta na parede branca, enquanto o tempo, doidamente, se encolhe e me deixa zonza entre a correria sufocante do transitar de carros, que nunca param, só quando a madrugada os silencia, observada pelas estrelas... Esse tempo tem o perfume do mar, sob nuvens magentas agasalhando o sol, e o sabor de ameixa-doce.
         Peço a brisa que se detenha um pouco. Olho ao redor e, por onde caminho, percebo árvores que me espraiam os seus galhos, como se me abraçassem, estendendo-me algumas frutas. Quem as plantou teria escolhido, aleatoriamente, o seu cultivo?
         Nesse instante, a brisa traz-me o perfume dos pinhos, abençoados pela clorofila teimosa. Ela me responde com o sabor duradouro de hortelã, que se prolonga na alma... 
       E reconheço, emocionada, o meu tempo de agora, o tempo justo da colheita.
 

terça-feira, 8 de julho de 2014

A luz dos livros

                         As pessoas quando têm brilho não passam, deixam o seu rastro de luz em nós ou em algum lugar. Assim são os bons livros... Suas páginas nos extasiam como borboletas endoidecidas no espaço, subindo e bailando, impregnando de fantasia e cores os olhos de quem as observa. Sim, há pessoas que não passam, há livros que não passam, porque nos deixam sua beleza essencial. E a beleza essencial não é transitória, é raiz que nos finca na alma. Não tenho mais comigo muitas pessoas que amei e se foram, deixaram-me, contudo, a sua luz. Também não tenho ao meu lado, ao alcance da minha saudade, alguns livros que muito amei, ou porque os emprestei e não retornaram, alguns com a minha aquiescência, ou  porque os doei...
              Com o passar dos anos, à chegada da maturidade, vamos nos libertando dos apegos materiais ou afetivos, aqueles que nos escravizam, que nos fazem sentir donos e possuidor de algo ou de alguém.  O envolvimento emocional com os livros me parece até maior, pois somos tomados por um apego tríplice: material, mental e espiritual-afetivo e, por isso, bem mais difícil de nos desapegarmos. Similarmente, no entanto, a maturidade também nos ensina o despojamento, que devemos passar adiante e sempre, o condutor, a fonte daquilo que nos faz melhor, nos faz crescer. Fico imensuravelmente feliz, quando vejo livros que eram meus contribuindo para que alguém  possa abrir as portas de sua espiritualidade e conhecimento, da mesma forma como fez comigo um dia. O importante é o que assimilei, o que contribuiu para a minha formação como ser humano, e está dentro de mim feito raiz. Guardar os livros só para nós, apegar-nos a eles como a uma teia, é privar alguém de experimentar uma riqueza que pode, e deve, ser partilhada. 
               Que voem de nós os livros, que voem feito borboletas bailarinas e pousem em  infinitas veredas sedentas do saber, e ali finquem também os seus ensinamentos, a sua luz, porque essa é para sempre!

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Hábitos e manias

           Não sei quando começaram os meus hábitos, alguns penso que os conservo desde a tenra idade, outros, provavelmente, os tenha adquirido ao longo da vida. Hábitos são comportamentos parentes das manias e que, com o passar dos anos, arraigam-se em nós feito musgo à pedra. Num mergulho profundo e isento de mim, estou convicta de que adquiri mais hábitos do que manias, pois não contabilizei perdas ou afastamento de afetividades vitimadas por minhas manias, ao contrário, muito mais as tenho arrebanhado por meus hábitos.
Há aquelas manias  e hábitos que modificam tanto e a tal ponto o modo de viver de alguns, confrontados com o dito normal, que levam muitos aos consultórios psicológicos, para se livrar deles ou ter com eles uma convivência harmoniosa e, de preferência, não interfiram demasiadamente na vida de quem quer que seja. Nunca passei por nenhuma análise em consultórios psicológicos, longe de desdenhá-la, contudo, e muito mais por temer ouvir aquilo que pretensiosamente já soubesse ou ousasse supor.
 Algumas manias tornam-se tão incorporadas à personalidade, que nem sempre é possível se dar conta, muitas vezes, o alerta de amigos é imprescindível, assim como a aquiescência em confirmá-las e a coragem para superá-las.
 Embora com tanta similaridade, hábitos e manias podem tornar pessoas especialmente interessantes ou exaustivamente chatas. Estão excluídas do rol dos chatos pessoas que têm o hábito de ligar para saber se você está bem, se trancou a porta, antes dormir, se precisa de alguma coisa, que enviam flores ou  cartão no seu aniversário, que trazem, na ponta da língua, uma salvadora receita caseira para curar-lhe daquela enxaqueca que azeda e entorpece o seu dia, e jamais perguntam se a causa é afetiva, aflitiva ou por excesso de trabalho, simplesmente porque são pessoas que possuem o requintado hábito de serem delicadas, discretas e cuidadosas. Não diria o mesmo àquelas com mania de perguntar tudo, desde o nome do perfume que está usando, até para onde você pretende viajar nas férias, e, se já tiver retornado, o endereço do hotel em que se hospedou, com a desculpa de querer apenas uma referência, caso escolha o mesmo lugar para passear.
 O certo é que se temos amigos com manias que nos dificultam relacionarmos com eles, mas os amamos, apesar de tudo, há que se ter paciência e tolerância; uma boa pitada de bom humor também ajuda, consideravelmente.
 Concluo que a diferença entre hábitos e manias não se atém, exclusivamente, à semântica, mas, e sobretudo, à essência dos detalhes...