segunda-feira, 29 de setembro de 2014

O perfume e o sabor que os tempos têm


      Gosto de caminhar quando o sol se põe, tenho a ousadia compartilhada de que a brisa se espreguiça e vem passear de mãos dadas comigo. Brisa cúmplice, desobrigada com tempo, razões ou amarras.
      Lá vamos nós: ela fazendo-se lenta, para acompanhar os meus passos e eu equilibrando-me, trôpega, para não desabar do seu ritmo. Sinto o seu sopro nos meus ombros que me alenta e refaz, como se me desse asas. O mesmo sopro que me traz o perfume e o sabor dos tempos.
        E vejo a menina correndo, cabelos tão lisos e loiros, soltos ao vento, subindo ladeiras, esgueirando-se por becos vizinhos, brincando de esconde-esconde, ao lado de uma criançada que grita e saltita, movida por uma felicidade sem fim e tão funda, que chega a doer as entranhas. Esse tempo tem o perfume de terra molhada e o sabor de baunilha.
        Caminhar com a brisa me parece tão hipnótico, que  já não sinto os meus pés, certamente devo estar voando. Mas para que eu haveria de querer pés, se é o tempo em curva que quero alcançar com as minhas asas? Agora, ouço uma música suave e danço quase sem perceber. Vejo-me sonhando com possibilidades inventadas e traduzidas só para mim, todas registradas em um diário que traz na capa o desenho de uma jovem, sentada em uma cadeira de balanço, na varanda, rodeada por lindo jardim florido. Pendente entre as páginas do diário, um pequenino cadeado dourado, com chave... Tão pequenino para guardar tantos segredos do coração. Esse tempo tem perfume de azaleias e o sabor de pitangas vermelhas.
        A brisa se faz mais rápida para me apontar as horas num relógio imperioso e indiferente, relógio que marca responsabilidades, trabalho e compromissos que parecem inadiáveis, relógio que se agiganta na parede branca, enquanto o tempo, doidamente, se encolhe e me deixa zonza entre a correria sufocante do transitar de carros, que nunca param, só quando a madrugada os silencia, observada pelas estrelas... Esse tempo tem o perfume do mar, sob nuvens magentas agasalhando o sol, e o sabor de ameixa-doce.
         Peço a brisa que se detenha um pouco. Olho ao redor e, por onde caminho, percebo árvores que me espraiam os seus galhos, como se me abraçassem, estendendo-me algumas frutas. Quem as plantou teria escolhido, aleatoriamente, o seu cultivo?
         Nesse instante, a brisa traz-me o perfume dos pinhos, abençoados pela clorofila teimosa. Ela me responde com o sabor duradouro de hortelã, que se prolonga na alma... 
       E reconheço, emocionada, o meu tempo de agora, o tempo justo da colheita.