terça-feira, 29 de outubro de 2013

Gente que é arte (crônica)


             A vida me mostrou que amigos são como um cordão invisível  e terno, que nos enlaça e puxa em direções ora oblíquas ora convergentes, aqui e ali, abrindo e fechando elos afetivos.                
              Eu não conhecia Lília, a anfitriã. Fui levada a sua casa por uma amiga, onde encontraríamos outros amigos. Amigos que se reúnem para aconchegar a amizade num copo de suco ou em uma xícara de chá. Só que eu não supunha ser um encontro com a arte, a arte mais simples e delicada, sem sofisticação, sem rebuscamento, só alma. Com gente que é a própria arte. 
              Que bom constatar que as pessoas que imaginamos únicas, acabam transcendendo o imaginário.
               Uma borboleta, multicolorida e quase viva, de tão real, colada à porta de entrada, não estaria ali por acaso. Mãos especiais a teriam designado guardiã de algum tesouro, que não se descreve com palavras.

            Lília, uma senhora de olhos brilhantes e sorriso afável, fez-me sentir como se eu costumeiramente frequentasse aquela casa. Generosa, de leveza nos gestos, feito gente que transforma naturalmente em arte tudo o que toca, mas não se dá conta, talvez porque Deus escolhe os seus artistas, mas não revela a eles sua escolha, delegando essa tarefa à observação sensível de alguns e, quem sabe, por merecimento, absorvê-la.
      A viuvez não a fizera solitária, ao contrário, deixara-se acompanhar pela pintura, que coloria os seus dias em movimentação e prazer, tornando sua companheira fiel, "mas exigente", ponderou, com um sorriso brincalhão. "E, muitas vezes, impaciente", emendou, num tom simulando crítica.
         Havia quadros, pintados por ela, distribuídos pelas paredes dos diversos ambientes da casa: antessala, sala e quartos. Senti-me imediatamente abraçada e acolhida pela arte. Com voz mansa, quase inaudível, fez questão de falar sobre cada um dos quadros: a motivação e o tempo que levou para pintá-los. Ali, sob as paisagens de campo, montanha e mar, a arte também registrava um pedacinho de sua história de vida.
     A disposição geométrica dos pratos, copos e talheres era pura arte, espontânea e despojada. Os sucos, em jarras transparentes, tinham cores indefinidas, que também brincavam de arte, bem diante dos meus olhos. 
     Lília pegou o meu copo, delicadamente, colocou nele um pouco de suco e pediu-me para experimentar e adivinhar o sabor. Num segundo, voltei à minha infância, quando, sentada no chão, em círculo, ao lado de outras crianças, brincávamos de adivinhação. 
      O suco impregnou a minha boca de um sabor intraduzível. Bebi um gole e outro mais. Sacudi a cabeça pedindo aos céus para ajudar-me a traduzir o sabor daquele néctar dos deuses, mas em vão. O sorriso confortante e brincalhão de Lília acudiu-me prontamente:
       - É uma brincadeira que faço com os meus convidados. Os sucos são feitos com mistura de frutas exóticas, o sabor fica propositalmente indefinível.
      Senti-me apanhada na doce brincadeira e sorri maravilhada. Todos sorriram contagiados e o lanche transcorreu em meio à afetividade e arte, trocando de lugar o tempo inteiro.
     Arte que esculpe sorriso aberto em mãos naturalmente mágicas, arte que a gente absorve e cataloga no âmago, porque é onde guardamos o abissal divino.